Fonte: GE/Walter Henrique da Silva com Camila Sousa
É só um espelho. O que eu vejo? Eu.
Mas não estou aqui para dizer o que vejo. Eles me botaram aqui para que eu falasse algo para Walter. Não para esse Walter de agora, que está na minha frente. Mas para um outro Walter. Mais novo, no início da vida.
O que eu diria para esse Walter, do passado?
“Estude, Walter. Estude mais”.
Porque, se eu tivesse estudado, eu mesmo estaria escrevendo esta carta.
Mas isso não impediu de escrever a minha história. E essa eu posso contar para vocês.
Sempre fui um cara calado, na minha, mas chegou o momento de colocar para fora algumas verdades. Por algum tempo, duras para mim. Hoje, nem tanto. Calejado pelos 33 anos, me vejo maduro para encará-las de peito aberto.
Sou muito grato a Deus por ter me dado o dom de jogar futebol. O esporte transformou minha vida. Fez um garoto favelado, do Coque, comunidade na região central do Recife, chegar até a seleção brasileira. Ter o nome ovacionado em grandes estádios. Vencer. Ser campeão. Campeonato Gaúcho, Libertadores, Liga Europa, Série B, Copa Verde….
Calejado pela vida, Walter, aos 33 anos, olha pra si mesmo: “Eu preciso mais de mim”. | Foto: Marcelo Cabral
O futebol devolveu a mim uma dignidade negada na infância. Porque, fora do campo, Walter não sabe fazer nada.
Não consigo imaginar o que eu poderia ter sido se não fosse a bola. Talvez, vendedor de água no sinal. De pipoca, laranja… O que eu já fazia quando era menor, mais jovem, escondido da minha mãe pra ganhar uns trocados.
E é pra esse menino que eu diria: “Estude, Walter! Por favor, estude.”
Sou semianalfabeto. Escrevo o meu nome, com dificuldade, e algumas outras coisas. Larguei o colégio na quinta série – depois de reprovar cinco vezes. Não sabia ler e escrever até os 18 anos.
Tenho muita vergonha disso. Um dos meus poucos arrependimentos na vida é esse. Aliás, o principal. Porque, sem dúvidas, minha carreira tomaria outro rumo se eu tivesse estudado.
Walter, quando criança, na favela do Coque. | Foto: Walter/Arquivo pessoal
Quando eu saí de casa, aos 14 anos, depois de rodar na base do Santa Cruz e do Sport, no Recife, fui para o Vitória, da Bahia. Cheguei ganhando um salário de R$ 800, mas meu empresário achou pouco, e me levou para o São José para eu ganhar… R$ 100.
Tem vezes que o empresário tira você de um lugar – como me tirou do Coque, um bairro extremamente violento -, dá aquelas coisas (celular, dinheiro…) e você acredita no cara. Só que eu não sabia ler, não sabia escrever. Não reclamei.
Pus na cabeça, então, que ia trabalhar para ganhar mais.
Walter com companheiros na época de internacional. | Foto: Reprodução/Instagram
Veio a Copa São Paulo, em 2008. Fui artilheiro pelo São José, e o Internacional se interessou por mim. Assinamos contrato de risco de seis meses para o sub-20. Caso eu jogasse bem, renovariam por cinco anos no profissional. E assim aconteceu.
Meu salário pulou de R$ 1.500 para R$ 15 mil. Pedi um ano de antecipação e transferi todo o dinheiro para a minha mãe comprar um apartamento para ela. Até hoje, um dos meus maiores sonhos realizados. Um dos tantos sonhos realizados.
Como foi quando fui convocado pra seleção de base.
Não tinha caído a ficha. Os meninos falando: bora, Walter, tás na seleção! E eu mudo, sem dar um pio. Nem acreditei, mas quando cheguei lá, graças a Deus fui artilheiro, melhor jogador e campeão do Sul-Americano sub-20.
Walter, no centro, ao lado de Everton Ribeiro, comemora título Sul-Americano com a Seleção. | Foto: Arquivo Pessoal
Vi o mundo além da janela da minha casa, do meu bairro. Além de mim mesmo. Viajei de avião para fora do país pela primeira vez.
“Tô deitando na cama onde o Ronaldo deitou, tô comendo a comida do Ronaldo!”, pensava, na Granja Comary.
Para quem veio do nada, parido num dos bairros mais pobres de Recife, a experiência na Seleção me permitiu vivenciar outras várias “primeiras vezes”. Uma, em especial, me marcou muito.
A gente fez a pré-temporada nos Estados Unidos para jogar o Sul-Americano, e lá estava nevando pra caramba. Tiago Dutra era meu colega de quarto e disse: “Vamos pra rua.”
Eu me assustei. Um menino que saiu do Coque ver aquilo… Eu e ele brincamos de guerra de neve, um jogando bola no outro. Tipo assim: isso foi muito importante na minha vida. Até hoje falo com o Tiago sobre isso.
Senti o prazer de ser o que nunca pude: criança. Aos 18 anos. Era uma época feliz, mas é aquela coisa: tudo na vida tem o ônus e o bônus.
Fiquei no Inter até 2010. Conquistei o Campeonato Gaúcho Sub-20 e o profissional, em 2009, até chegar o interesse do Porto, de Portugal. Ali, mais uma vez, senti o peso do que é estar à margem de tudo. Não entender as coisas direito.
Atacante Walter, no Porto. | Foto: Reuters
Fui vendido por um valor. Me disseram outro. Menor.
Tipo assim: me prometeram um salário de 30 mil euros. Eu recebia 15 mil euros. Prometeram uma luva de R$ 500 mil. Não me pagaram até hoje”
“Ah, Walter, por que tu não cobrou? Não questionou?”
Eu não sabia quanto valia o euro, cara. Falava: que moeda é essa? Que moeda é o dólar? Mas jogar no Porto, naquele momento, bastava. Dividir o campo com Hulk, Falcão Garcia…
E isso bastou até o nascimento da minha filha, Catarina Vitória, em 2010. Porque pela primeira vez comecei a pensar em mim. Com 23 anos. Quis voltar para o Brasil, não estava satisfeito em Portugal. Deixei o Porto e fui jogar no Cruzeiro, emprestado. Sofri com duas lesões, joguei pouco – e mal.
Até que meu telefone toca. Do outro lado da linha estava Enderson Moreira. “Vem para cá que você vai jogar”. Era o técnico do Goiás, lugar onde minha carreira mudaria. Artilheiro do Brasileirão, Bola de Prata, campeão da Série B, semifinalista da Copa do Brasil… Os holofotes estavam em mim. Pelo que fiz em campo.
Assim eu imaginava.
Mas isso não era suficiente para a opinião pública. Principalmente a imprensa. Eu não podia ser bom de bola, goleador. Era tão só o “gordo” Walter, jogador do Goiás. Resumido a um animal: “Olha a baleia”!
Ah, se eu fosse ligar para tudo que falam sobre mim…Tava lascado. Só que, quem apanha não esquece.
Nunca neguei problemas com o peso. O pessoal até tira onda me chamando de cachaceiro, mas eu não gosto de beber. Meu negócio é comida. Coca-cola, biscoito recheado… E não tem quantidade, tipo assim, comer 20 biscoitos por dia… É abrir a boca.
As pessoas apontam o dedo, julgam, mas ninguém quer entender. E cada um tem sua história, como diz minha mãe. E a minha, irmão, é de um menino que ia no mercado, queria um algo a mais para comer e não tinha nada no bolso. Engolia o choro e seguia.
Quando eu voltei para o Athletico, em 2020, a gente fez um tratamento. O clube contratou um psicólogo para conversar todos os dias comigo e ele disse:
“Walter, o seu problema é compensar na comida o que você não teve no passado. A gente vai cuidar”.
Walter nos braços da mãe, Edith, por quem é devoto: “Depois de Deus, ela é tudo”. | Foto: Marcelo Cabral
Perdi 23 kg em quatro meses, cheguei a 90 kg, até hoje o meu menor peso. Fiz um trato com os médicos: a cada 3 kg a menos, teria direito a um biscoito recheado. Aí a gente foi fazendo, fazendo, e graças a Deus deu certo.
O que os caras falavam quando me viam? “Tá drogado, tá cheirando pó”. Mas ninguém sabia o quanto eu ralava, treinando três vezes por dia, 8h, 10h e 16h, para chegar nesse padrão… E segurando a comida.
Nunca foi fácil, mas minha mãe prenunciava: “Filho, Deus vai te honrar.” É o que eu sempre falo: abaixo de Deus, minha mãe é tudo. Ela foi minha mãe e meu pai. Trabalhou de garçonete, camareira, vendedora de perfume…
Walter no Athletico-PR. | Foto: Arquivo Pessoal
Dona Edith me sustentou em todos os momentos. Estava por mim nos bons e, principalmente, nos ruins. No pior deles: o doping. Sumi do mapa por dois anos, me isolei. Não via TV, não assistia nada de futebol. Joguei até em time de pelada para ganhar dinheiro.
Na época, eu jogava no CSA em 2018 e acabei tomando um remédio para emagrecer depois de receber uma mensagem de uma mulher no Instagram, pedindo para fazer uma parceria. Falei com o médico do clube, ele autorizou e eu tomei.
Fui inocente de confiar nas pessoas. Inocência que custou caro: mais de R$ 1,5 milhão – gastos entre processos na Justiça e pagamentos de advogados.
Pelo menos durante a suspensão por doping que eu vi quem é quem. Quem são meus amigos de verdade. Porque no futebol você tem conhecido. Amigo mesmo eu conto nos dedos.
Como seu Hailé Pinheiro, presidente do Goiás, que tirou R$ 100 mil do bolso para eu ser julgado no Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), lá na Suíça. A gente tinha esperança de barrar a ampliação da pena, que era de um ano, para dois de afastamento. Não deu certo.
Também não esqueço de quem me ajudou a sair do buraco quando finalmente voltei a jogar: Petraglia, presidente do Athletico. Disputei Libertadores, Série A e Copa do Brasil. Dois anos depois de viver a pior fase da minha carreira.
Tive que amadurecer na marra. Quebrei a cara várias vezes. Descumpri promessas que fiz a mim mesmo. “Walter, mais foco, concentração, força de vontade”. Em vão.
Deu o tempo do meu contrato no Athletico, eles não renovaram, voltei a engordar… Voltei à estaca zero.
No ano seguinte, em 2021, três clubes em uma temporada só. Vitória, São Caetano e Botafogo-SP. Não queria isso para mim, ficar rodando de um time pra outro. Falei que em 2022 seria diferente, que eu ia fazer diferente. Não foi.
Erros repetidos. No Santa Cruz estava feliz, com meus amigos e minha família por perto, mas mesmo assim pedi para sair e acertar com o Amazonas por causa de dinheiro. Também não demorei no Goiânia. Ainda arrisquei no futebol society pela primeira vez.
É difícil. Tem vezes que a gente segue firme nos nossos propósitos, mas na vida a gente fica triste e muitas coisas acontecem no meio do caminho.
Pensei em largar o futebol, estava cansado. Tomei um tempo para mim mesmo. Acima de tudo, ouvi. Ouvi minha família e, principalmente, minha filha, Catarina. “Pai, não desiste, faz o que você sabe”. Por ela, continuei. Afinal, a minha caminhada sempre foi essa: cair e levantar.
Ainda quero voltar a jogar uma Série A, Série B. Tenho esse sonho. Sei da minha capacidade. Mas, igualmente sei que eu preciso mais de mim. Porque essas últimas experiências em times menores, com todo respeito, mostraram a realidade. O meu momento no futebol: tomei um susto.
Walter fez a sua estreia pelo Pelotas na Divisão de Acesso no último domingo. | Foto: Lucas Canez/Pelotas
A gente tende a sofrer no começo da carreira, pegando times menores para crescer lá na frente. E comigo aconteceu o oposto. Confesso que passar pelo que eu passei nos últimos dois anos é diferente de tudo.
Você tá ali, acostumado com uma cobrança muito grande, acostumado com torcida gigante, acostumado a ir em estádio e a torcida gritar teu nome, ir para um jogo de avião, aeroporto todo dia, e agora você diminui seu nível. Você mal viaja. Tipo assim… Você pensa duas vezes.
Porque é um lanche da noite, hotel onde fica. Tudo muda. Você está acostumado com um banquete e num time menor não tem isso. É um pão, dois pães para cada. Mortadela… Em time grande, é queijo, iogurte, tudo que você imaginar, tem. E time menor, não tem. Tem um suco e um pão, e olhe lá. Vez em quando tem uma manteiga.
Ainda assim, quando olho para trás… Percebo mais conquistas do que fracassos. Lembro da minha infância, o “Quico do Coque”, à espera de uma oportunidade para ganhar o mundo com a bola nos pés e se forjar Walter.
Consegui.
Vejo também alguns traumas nessa jornada, como o abandono do meu pai, José Amaro, durante a infância, e que hoje está desaparecido. O assassinato do meu irmão Waldemir, por tráfico de drogas, quando eu ainda era uma criança. Feridas abertas. Mas tô inteiro.
Não tenho do que reclamar, mesmo se não voltar a jogar uma Série A. Estou satisfeito com o que eu fiz. Aonde eu chego as pessoas param para tirar foto comigo, me conhecem. Fruto do meu trabalho. Pelo meu dom em jogar futebol. Não por causa do meu excesso de peso.
Descontraído, Walter bate papo com amigos na comunidade do Coque. | Foto: Marcelo Cabral
Claro, senti falta de uma pessoa me ajudando. Saí do Coque, não tinha um estudo, não tinha malícia que alguns meninos de hoje têm. Saí de um bairro simples e fui vencer minha vida fora. Em dois, três anos, estava na Europa. Não esperava. Não tive estrutura para pegar isso.
Que fique registrado: essa carta não é uma tentativa de jogar culpa nos outros pelas minhas quedas. Eu me prejudiquei, mas nem tudo é preto no branco.
Ainda há tempo. Posso me reinventar aos 33 anos. Construir o Walter do futuro. Estudar mais. Penso em ser treinador daqui a uns anos. Ajudar o Coque com projetos sociais, tirando alguns meninos da comunidade através do futebol.
Meninos que eu vejo quando olho para esse espelho.
Walter abraça criança, também cria do Coque, em campinho onde deu primeiros passos na carreira. | Foto: Marcelo Cabral
O que eu diria para eles?
Pra esses meninos do Coque?
Eu diria:
Levantem a cabeça.
Escrevam a história de vocês.
Estudem, por favor.
E, se um dia eu puder ajudar, contem comigo.
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